sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Fotos da guerra do cangaço revelam lado desconhecido de Lampião

Da redação com Folha de São Paulo
POR ELISE JASMIN
tradução ANDRÉ TELLES
RESUMO O trecho nesta página faz parte do artigo "A guerra das imagens: Lampião descobre a fotografia", que integra o livro "Conflitos: Fotografia e Violência Política no Brasil 1889-1964", com organização de Heloisa Espada e Angela Alonso, a ser lançado em dezembro pelo Instituto Moreira Salles.
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Perseguidos sem trégua durante aproximadamente 20 anos pelas forças da ordem, Lampião e seu bando de cangaceiros atravessaram, devastaram e saquearam o sertão do Nordeste. Desafiaram não só as autoridades policiais e políticas da região, como também o poder central do Brasil.

Guerreiros valentes para uns, brutos sanguinários para outros, os cangaceiros sob o comando de Lampião atuaram de 1922 a 1938, data em que as forças da ordem puseram fim a seu reinado de terror.

Surpreendidos numa emboscada, Lampião, sua mulher e nove de seus companheiros encontraram a morte em 28 de julho de 1938, na grota do Angico, no Estado de Sergipe. Foram todos decapitados.

Suas cabeças foram levadas de cidade em cidade e expostas em praças públicas com uma mise-en-scène estudada. Em seguida, foram examinadas por médicos-legistas, que nelas tentaram detectar estigmas de monstruosidade, e depois exibidas no museu ligado ao Instituto Nina Rodrigues, da Bahia, até 1969, quando grandes multidões se deslocavam para vê-las. [...]

Nascido em 1898 no sertão de Pernambuco, na região do Pajeú, que foi o berço do cangaço e de onde saíram seus ilustres predecessores —Cabeleira, Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Casimiro Honório—, Lampião, a princípio, é fruto de uma sociedade marcada pela violência, na qual é forte a tradição do banditismo de honra.

Lampião, em 1922, toma a frente de um movimento que, sob muitos aspectos, ele revolucionará. Chefe de bando, instituíra rituais, valores e um estilo de vida bem específico no seio do grupo.

Fez do cangaço um modo de vida, até mesmo uma profissão; percorreu, dominou e devastou um imenso território à frente de um grupo que contou até cem homens, fragilizando o equilíbrio político e econômico do Nordeste brasileiro e colocando em perigo a autoridade e a legitimidade do poder de Estado no sertão.

À frente de seu bando de cangaceiros, Lampião atacava e arrasava propriedades e vilarejos, extorquia parte da população, introduzindo o rapto em seus métodos crapulosos e jogando sutilmente com os antagonismos de clã entre os potentados locais.

O recurso a uma violência sem limites, à castração, às mutilações, à marcação com ferro em brasa permitiu a Lampião aterrorizar os sertanejos que não o apoiavam e consolidar sua reputação de crueldade. [...]

LAMPIÃO EM FILME

Enquanto as forças da ordem não conseguiam agarrar o Rei do Cangaço em seu antro, este último teve o topete de aceitar a oferta do fotógrafo e cameraman Benjamin Abrahão para fazer um filme sobre a atividade de seu bando. [...]

[Nas cenas], os cangaceiros aparecem nas mais diversas atividades, dançando, rindo, Lampião costurando, lendo um livro de Edgar Wallace, sendo penteado por Maria Bonita, dando ordens, exibindo com orgulho o armamento do grupo e demonstrando sua capacidade militar, acariciando dois cães, escrevendo uma carta com uma pena, passando em revista seu estado-maior. [...]

Nessa época de sua vida, Lampião não tem mais como única ambição ser um chefe guerreiro; exerce também outras funções no seio do grupo: introduziu a leitura do ofício religioso, é encarregado das relações com os potentados locais e os ricos fazendeiros a quem recebe em audiência, como um monarca; arbitra os litígios no âmbito do grupo, lê, para seus companheiros, poemas de cordel e artigos de jornais, sobretudo os que lhe concernem. [...]

Lampião insistia em ser fotografado com um livro ou uma revista na mão, lendo artigos sobre si próprio. Para um homem com pouca instrução, mas que alcançara grande notoriedade, emulava os notáveis e políticos importantes do sertão, conquistara um território e falava de igual para igual com as autoridades governamentais do Nordeste, era de extrema importância mostrar que sabia ler e escrever.

Lampião lia muito; escrevia em média três cartas por dia, a maioria pedidos de resgate, cartas de ameaça ou desafios aos inimigos.

A escrita de Lampião era quase fonética e evocava o sotaque nordestino, confinando-o à sua região e à sua classe social, o que fazia a alegria dos jornalistas e escritores da época. Totalmente consciente do fosso existente entre sua escrita e a dos livros ou jornais, nunca sentiu vergonha por isso e continuou a se comunicar por escrito. [...]

Publicadas na imprensa, as fotografias de Lampião e seus cangaceiros constituíam uma verdadeira provocação e foram certamente percebidas pelas autoridades policiais e governamentais como um desafio ao qual era preciso reagir.

BATALHA DE IMAGENS

Às fotografias ilustrando os sucessos, a riqueza e a invencibilidade de Lampião cumpria então opor imagens eficazes, indicando nitidamente onde estavam o poder e a ordem. Ao espetáculo de um bandido invulnerável, a despeito de perseguido durante duas décadas, respondiam imagens traduzindo uma vontade férrea e uma autoridade implacável.

Ao lermos os jornais do litoral nordestino, fica claro que a fotografia desempenhou um papel não desprezível na instalação dessa relação de forças entre Lampião e seus adversários.

Ao mito de Lampião irão opor um contramito: o do oficial e soldado das volantes disposto a destruir uma das formas mais espetaculares de barbárie do sertão. Depois de mais de 20 anos no cangaço, Lampião podia se gabar de ter se tornado um personagem público.

No fim dos anos 1930, não sobrevivia mais graças a seus feitos guerreiros, e sim porque tinha conseguido tecer toda uma rede de relações de clientela e corrupção no interior do Nordeste. Parecia quase evidente que as forças policiais acomodavam-se a esse estado de fato.

Essa rede, todavia, não foi capaz de resistir ao sistema autoritário imposto pelo Estado Novo a partir de 1937. Para o regime de Getúlio Vargas, com efeito, era inadmissível que Lampião pudesse continuar a desafiar não só as autoridades policiais, como todo o sistema político centralizador sobre o qual repousava a ditadura recém-instaurada.

A pretexto de impedir qualquer manifestação de desordem no território nacional, o Estado Novo, em 1937, incluiu Lampião e seus cangaceiros na categoria dos "extremistas". A sentença não demorou a sair: a ordem era matá-los.

ESPETÁCULO DA MORTE

Em 28 de julho de 1938, Lampião e parte de sua tropa foram surpreendidos pela volante do tenente João Bezerra, em consequência da traição de um de seus coiteiros. Uma vez "terminado o massacre", a força volante decapitou os cadáveres e partiu com as cabeças em direção à cidade de Piranhas (AL), onde o povo pôde finalmente "regozijar-se" com o fim de Lampião, "a própria encarnação da morte".

Numa espécie de resposta à alegação de onipotência e invulnerabilidade do célebre cangaceiro, exibiram as cabeças como troféus, a fim de mostrar aos olhos do mundo que aquele corpo fechado, impermeável às balas e ao facão, podia ser fragmentado.

A morte de Lampião foi encenada, e seus adversários recorreram a todo tipo de simbólica religiosa: transportaram as cabeças de Lampião e de seus companheiros de cidade em cidade, de vila em vila, numa espécie de procissão macabra, misturando tradições solenes e manifestações de júbilo popular, o sagrado e o profano.

Na cidade de Piranhas, festas, desfiles, manifestações de um entusiasmo mais ou menos espontâneo, fogos de artifício e banda de música acompanharam o cortejo macabro.

Uma das primeiras preocupações dos organizadores e jornalistas presentes foi fotografar os diferentes momentos daquela cenografia sinistra e repassar as imagens para a imprensa.

Uma das mais célebres, ilustrando a tragédia final, é incontestavelmente a que mostra as cabeças de Lampião e de seus companheiros dispostas no adro da igreja de Sant'Ana do Ipanema: essa fotografia é produto de uma mise-en-scène bastante elaborada.

As cabeças dos 11 cangaceiros foram dispostas num pano branco estendido sobre os degraus da igreja. Em volta de todas essas cabeças foram distribuídos, com grande esmero na simetria, as armas, cartucheiras, embornais e chapéus dos cangaceiros, bem como duas máquinas de costura.

A disposição das cabeças não foi aleatória: a de Lampião, o chefe, o instigador, o arquiteto, o "Rei do Cangaço", foi isolada das dos outros, está no primeiro plano, na base da composição. Os símbolos da riqueza e da força guerreira dos cangaceiros estão ali, moldura e ao mesmo tempo cenário de uma espécie de natureza-morta macabra.

Esses vestígios —bordados, ornamentos, moedas de ouro— de um brilho que nos dizem estar definitivamente perdido contrastam violentamente com as cabeças cortadas, remetendo infalivelmente aquele que observa ao ato de decapitação e profanação do cadáver.

Entretanto, a despeito da vontade de perenizar a morte física e a destruição de Lampião mediante imagens irrefutáveis, o mito da imortalidade desse herói persiste, expandindo-se ainda nos dias de hoje: mesmo diante das cabeças dos cangaceiros mortos, alguns sertanejos não acreditaram na morte de Lampião.

Não acreditaram no que lhes era apresentado como uma evidência: nenhuma imagem-prova, nenhum suporte visual, seja qual for, pode resistir à força da crença.

ELISE JASMIN, historiadora, é autora de "Lampião, Senhor do Sertão: Vidas e Mortes de um Cangaceiro" (Edusp) e "Cangaceiros" (Terceiro Nome).

ANDRÉ TELLES é tradutor.

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