sexta-feira, 20 de junho de 2014

Opinião: Chico Buarque, não censure o que nasceu do teu esperma de gênio

ZÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Chico Buarque, você me convidou há 44 anos para fazer sua primeira obra-prima para teatro: "Roda Viva".

Numa generosidade rara, bancou a produção. Havia a previsão de um coro de quatro artistas cantora(e)s, mas, no teste, uma multidão de estudantes artistas, forjados no teatro das ruas de 1968, ocupou o Teatrinho Princesa Isabel. Não foi um mero Occupy, mas um movimento revolucionário de arte. Sua produção acolheu a todos.

Esperada há milênios, desde o teatro grego, sua peça trouxe o retorno do coro pagão cantor e dançarino, tão protagonista quanto os protagonistas. A energia produzida era tão forte que abrimos os ensaios antes da estreia.

Chico Buarque - 70 anos

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Zanone Fraissat/Folhapress
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Show de Chico Buarque em São Paulo no HSBC, em 2012
Era verão. O Rio achou uma nova praia: ensaios de "Roda Viva". O coro tocava nas pessoas que iam festejar, como no Chacrinha, no Carnaval, no Candomblé, ignorando limites de palco e plateia.

Desde a estreia, os teatros por onde passou "Roda Viva" sempre estiveram lotados.

Todos sabem dos ataques do CCC em Sampa e, depois, em Porto Alegre, feito pelo próprio 3º Exército, que proibiu a peça em território nacional. Veio o AI-5, muitos o atribuem, para nos condenar, à "Roda Viva". Estes fatos fizeram uma sombra sobre a importância que a peça teve e tem na cultura teatral.

Amado Chico, hoje você proíbe a encenação, declarando que a peça é fraca.

O astro explodido de repente no showbusiness imediatamente a produziu, vindo desta experiência concreta em seu corpo uma obra de arte de forma-conteúdo originalíssima, com alegorias sofisticadas, pops, mimetizando a Jovem Guarda, a MPB —penetrando criticamente em si mesmo, com coragem.

A linguagem dialoga de igual para igual com o melhor Nelson Rodrigues. Nas músicas, você retorna ao teatro musical de Noel Rosa.

Eu tinha vergonha de minhas primeiras peças,tachadas de "pequeno-burguesas", "alienadas", "psicológicas", "simbolistas". Minhas "pecinhas" estavam perdidas, encontrei duas no Arquivo da Polícia de Diversões da USP.

Danilo Miranda presenteou meus 70 anos com a produção de minha primeira peça, "Vento Forte para um Papagaio Subir". Aceitei, dirigi e atuei. Descobri que tinha feito. Era poeta e não sabia.

Hoje, dos meus 77 anos, contemplo os teus 70 e pergunto: temos ou não que adotar todos os filhos que parimos? Essa tão aclamada e massacrada primeira filha tua, que já tem 44, quer o reconhecimento de seu criador.

Este é o maior presente que te posso dar aos 70: não censurar nada que nasceu de teu esperma de gênio, como diz Einstein, engolindo o universo em seu corpo e sua obra.

ZÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA é diretor teatral 

Folha de São Paulo

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