Javier Martín
El País, em Madri
Um tripulante da Enterprise jaz inconsciente. Diante das sobrancelhas levantadas de Spok, o doutor McCoy descobre qual é o problema apenas passando seu Tricorder por cima do corpo. Em "Star Trek" [Jornada nas Estrelas], série de ficção científica dos anos 1960, corria o século 23. A tripulação do capitão Kirk realmente estava muito atrasada. O Tricorder havia chegado dois séculos antes.
No final deste ano poderá haver Tricorders de verdade. A Qualcomm, fabricante de chips 3G, premia com 8 milhões de euros quem integrar a medição de 15 constantes vitais do corpo humano - como pressão arterial, batimentos cardíacos, temperatura -, além de armazenar imagens e dados pessoais colhidos através de sensores. Tudo isso em um aparelho pessoal e portátil com menos de 2,2 quilos.
A Nokia também doa mais de 2 milhões de euros para pesquisar sensores de saúde, e a Casa Branca fomenta o projeto de gráficos médicos que sejam entendidos rapidamente olhando para os celulares de seus donos.
Na Espanha, assim como em muitos outros países desenvolvidos, é cada vez mais preocupante a dificuldade para pagar a conta da saúde. E até os países que podem enfrentá-la hoje não sabem muito bem como o farão amanhã. "A sociedade mundial enfrenta o desafio de administrar essa conta. O modelo atual não é sustentável", afirma Pedro Díaz Yuste, diretor de Saúde Digital na Sanitas [empresa espanhola que atua na da área de seguro-saúde]. "Isso ocorre ao mesmo tempo que a Internet entrou em quase todos os bolsos dos pacientes, que tomaram consciência de que sua saúde lhes pertence. Eles são os dinamizadores dessa mudança. Graças à Internet, é mais fácil a gestão pessoal da saúde de cada um", continua.
"O sistema de saúde como o conhecemos é antiquado. Muitas práticas dos médicos são as mesmas de 200 anos atrás. A maioria continua pondo os dedos no pulso para contar os batimentos e rabisca em um papel os remédios que você deve tomar", afirma Don Jones, vice-presidente da Qualcomm.
No mundo há 860 milhões de pessoas com alguma doença crônica. Estima-se que 25% desses pacientes poderiam se beneficiar imediatamente de soluções para a monitoração de sua saúde em casa; outros 50% se beneficiariam da integração em seus celulares de recursos médicos já existentes. A questão é como.
"Antes de 2025 [isto é, muito antes do século 23 de "Star Trek"], 80% do trabalho dos médicos será feito por computadores, e melhor", escreve Vinod Khosla, que mesmo não sendo médico tem, como investidor, um olho clínico quase infalível. "A prática da medicina será substituída pela ciência da medicina", afirma.
Há algumas semanas o governo dos EUA lançou o concurso Desafio de Projetos de Saúde, um encontro anual para melhorar a apresentação dos registros médicos em computadores e celulares. Objetivo: acabar com a confusão e dispersão de dados médicos, cujos profissionais, ao que parece, conseguiram transferir sua caligrafia inexplicável para o mundo dos bits.
Dos 230 trabalhos apresentados (80 no ano anterior), o prêmio máximo foi para Nightingale, um aplicativo que representa visualmente os dados médicos e também faz previsões em função de estatísticas criadas automaticamente com o histórico de análises rotineiro. O sistema, de código aberto, poderá ser aplicado a qualquer seguro médico, mas começará com os 6 milhões de aposentados do governo federal americano.
"Durante nossa vida nos submetemos em média a três a cinco tratamentos médicos. Normalmente, embora seja pela mesma doença, são com médicos diferentes, em hospitais e lugares diferentes. Dispor desse histórico médico é uma tarefa impossível. A informação está desconectada", explica o diretor da Sanitas. "A saúde era nossa, mas estava nas mãos dos médicos. Agora o paciente é consciente dessa situação."
Mas talvez o profissional não goste dessa novidade. "Para 55% dos médicos jovens, os que têm menos de cinco anos de experiência, não agrada que o paciente tenha maior independência graças à medicina digital", explica Jordi Serrano Ponds, fundador da UniversalDoctor, baseando-se em uma pesquisa da Price Waterhouse realizada entre profissionais de cinco países europeus.
Em outubro, a Sanitas lançou a caderneta pessoal, onde cada um de seus associados pode incluir informação, seja ou não do seguro. É que a caderneta tem pouco valor se cada entidade ou sistema de saúde tiver a sua. "Estamos nos primórdios da medicina digital", indica Yuste. "Pensamos em abrir essa caderneta para qualquer um, talvez em troca de pagar uma tarifa mensal. Nós fomos só os primeiros, mas tenho certeza de que em dez anos todo cidadão terá sua caderneta de saúde na Internet. E será uma, e não sete."
O desafio é o padrão universal. Mas, se a indústria telefônica ainda não foi capaz de criar o carregador único, parece mais milagroso que as radiografias voem entre hospitais de diferentes países. Ou não.
"Na feira mundial do celular vamos divulgar uma iniciativa da indústria para criar padrões de saúde universais", explica Ginés Alarcón, diretor da fundação Mobile World Capital.
"Não é o trabalho de um dia nem de um ano, mas a indústria tem a ambição de criar protocolos universais para que os sistemas de saúde sejam interoperáveis, esteja onde estiver o paciente. Se o sistema bancário o conseguiu, a saúde também pode. Além da economia e das economias de escala, o fundamental é que cada pessoa tenha em qualquer circunstância e lugar todo o histórico médico ao seu alcance." Jones acredita que o celular tem uma oportunidade para se infiltrar nos estágios mais simples e básicos da medicina, como marcar hora com o médico ou solicitar receitas. Mas para isso não é preciso ir aos EUA.
No hospital Ramón y Cajal de Madri, a telemedicina está economizando 40% de tempo no departamento de consultas dermatológicas, onde começou a ser aplicada. Há algum tempo os médicos do atendimento básico enviam imagens e primeiros diagnósticos dermatológicos para o departamento correspondente no hospital. "Evitamos que o paciente faça viagens inúteis ao hospital, mas também conseguimos detectar antes as doenças graves", explica Sergio Vañó, médico do departamento e criador do DermoMap, um aplicativo para celular.
"Eu sou muito pró-tecnologia e creio que a saúde digital terá um papel importante nos próximos anos", explica Vañó. "Ainda há um vazio legal, tanto do ponto de vista da responsabilidade médica quanto da privacidade do paciente, mas a tecnologia pode aliviar muitos dos problemas da saúde pública."
Serrano concorda com o vazio jurídico. "Até agora o órgão americano FDA, que aprova os medicamentos, não havia cuidado da medicina digital. Quem garante agora que um celular mede corretamente a pressão? A Philips está há 40 anos nesse campo, passando por controles administrativos", indica.
O objetivo (atual) da saúde digital não é curar doenças graves como o câncer. Trata-se de reduzir as filas nas emergências dos hospitais, liberar leitos antes ou conseguir que o paciente não esqueça de tomar o comprimido para esquizofrenia (a metade da medicação para doentes crônicos é desperdiçada).
No caso do DermoMap, trata-se de um aplicativo para médicos e pacientes com informações e fotos das principais doenças da pele. "Não é para se autodiagnosticar", avisa Vañó, "e sim para ter uma primeira impressão e que o paciente consulte seu médico."
Um aplicativo da rede americana de farmácias Walgreens permite escanear o rótulo dos frascos de comprimidos e renovar o pedido de casa. "O que eu gosto nesses exemplos é que são maneiras interessantes de conseguir que as pessoas cuidem de sua saúde com seu celular", diz Jones.
Certamente há pesquisas que se aproximam da ficção científica, como o chip da Adamant que poderia detectar precocemente o câncer de pulmão analisando seus gases; ou o Ginger.io, que diagnostica a saúde mental analisando tuítes. Mas há aplicativos mais elementares e que funcionam. Como o lançado há um mês pela Sanitas para grávidas, que foi baixada 5 mil vezes. As associados dessa empresa já marcaram pela Internet mais de 300 mil consultas médicas.
"A telemedicina vai demorar", prevê o fundador da UniversalDoctor. "Com os aplicativos de conteúdo não há problema, mas sim com os médicos. É preciso mudar a lei. O médico que faz telemedicina recebe do seguro particular? Não. E a seguridade social paga quando um doente crônico envia seu nível de glicose por e-mail ao médico? Não."
Ángel Díaz Alegre inventou o iDoctus, a tradução dos sucessos americanos ePocrates e MedCad, dois aplicativos que reúnem no celular 80% das necessidades dos médicos: acesso aos medicamentos, monografias de patologias com milhares de imagens e vídeos, atualização de revistas científicas, um dosador de medicamentos pediátricos. "Nos EUA esses aplicativos são consultados pelos médicos quatro vezes por dia em média, e quase 1,5 milhão de profissionais os possuem", informa Alegre. "É muito útil, porque pode ser usado na própria consulta, diante do paciente, e está provado que o médico economiza cerca de cem minutos por semana."
"Os computadores são muito melhores que as pessoas para organizar e colher informação", escreve Khosla. "Têm mais memória, lembram melhor e mais rapidamente informações complexas e cometem menos erros que um médico de Harvard. Ao contrário da opinião popular, os computadores são melhores que os humanos para integrar e avaliar históricos médicos, sintomas e fatores ambientais."
Hoje em dia, junto com os aplicativos para celulares, os maiores avanços ocorrem no capítulo dos sensores corporais. "O conceito do sensor como uma tirinha, e não como um cabo, existe há dez anos", lembra Jones. "Mas só em 2012 vimos projetos de circuitos integrados ao preço de US$ 1." Nesse campo, a Nokia doa 2 milhões de euros para a fundação X Prize para desenvolver uma nova geração de sensores de saúde.
Parece que a saúde é um problema que afeta a todos. A situação é crítica na Espanha e em todos os países ocidentais. E a saúde digital, cada dia mais personalizada, abre campos muito interessantes. É uma tendência que não nasceu ontem, e que muitos pedem para ser potencializada. Em muitos países há anos o diabético não vai ao hospital para tirar sangue; ele mesmo o faz em casa. O caminho foi mostrado por "Star Trek": um Tricorder na mochila ou na nave.
Uma Europa de idosos monitorados
A população europeia com mais de 65 anos duplicou entre 1963 e 2008. Em 2050, cada dois trabalhadores deverão sustentar um aposentado.
Quarenta por cento dos europeus sofrem de doenças crônicas - cerca de 100 milhões de cidadãos. A medicação de que precisam custa aos governos europeus 125 milhões de euros. Em 2002 a Organização Mundial da Saúde indicou que a metade de todos os remédios receitados para esses doentes acabam no lixo.
Entre 70% e 80% do custo público da saúde nos países da OCDE é para doenças crônicas. Isso são 700 bilhões de euros. E o custo público da saúde duplicará entre 2005 e 2050 na maioria dos países.
Em três anos, cerca de 500 milhões de pessoas em todo o mundo receberão algum tipo de cuidado ou controle médico através de aplicativos em seus smartphones - um terço de todos os proprietários de telefones inteligentes.
O Reino Unido implementou o maior projeto mundial de aplicação da telemedicina a doentes crônicos (6.900 pacientes). Segundo suas conclusões, diminuiu em 14% a ocupação de leitos e em 20% as internações hospitalares.
O catálogo da App Store tem mais de 10 mil aplicativos de saúde, alguns dos quais chegaram a milhões de usuários. Só 77 deles têm alguma relação com o câncer, e só metade destes foi aprovada pelas autoridades médicas, segundo um estudo do "Journal of Cancer Education".
Na Índia, mais de 50 mil pessoas estão realizando verificações por telefone usando uma linha semelhante a um número 900. Não precisam ir ao consultório, simplesmente aproveitam a infraestrutura celular existente, em alguns lugares mais extensa que a canalização de água ou a rede elétrica.
Cada aparelho de saúde digital economiza entre 4 e 36 minutos diários ao pessoal médico e evita até 24 erros, segundo "Quantifying the Business Value of Medical Device Connectivity" (Black Box SME, 2011).
Tradutor: Luiz Roberto Mendes GonçalvesUOL Notícias SAÙDE
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